quinta-feira, 4 de junho de 2009

Ao Gás


E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.


Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.


Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.


E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

«Dó da miséria!… Compaixão de mim!…»
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!


Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde


Concentremo-nos apenas na segunda estrofe, para facilitar o esclarecimento dos aspectos dos poemas de Cesário Verde; Nesta estrofe é-nos revelada a imagem da cidade à noite, onde todos os versos identificam os candeeiros alinhados, ao longo da estrada. Podemos assim esclarecer a ligação da poesia de Cesário apenas com o sentido visão, com a visão pictórica onde a cor reina, onde a iluminação dos candeeiros sobressai nesta imagem imensamente escura que é a cidade à noite.

Cesário revela-nos a teoria de 'Arte pela Arte'. Ele preocupa-se com o valor estético dos seus versos, do que eles nos transmitem, alheando-se de quaisquer sentimentos.

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