quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Aquele Dia...

Elizeu recorda, ainda com alguma angústia, aquele dia...
Estava no cimo da serra e, sem dar conta, nevava bastante. O nevoeiro caía desalmadamente e não havia como conter o desespero sentido no momento. Era um sentimento de clausura, de solidão, de desorientação total. Ninguém comunicava. Liz nem sabia ao certo se havia outro alguém por perto...
Sentia-se isolado, num espaço branco, vazio, mas que anteriormente havia abarrotado. Sentia-se como quem luta contra um colete de forças e acredita poder vencê-lo. Mas Liz sabia que era impossível vencer tais forças da Natureza.
Fala no momento angustiante, muito sofredor, por que passou quando o medo despertou e o desejo de reencontrar o filho se tornava cada vez mais forte. Relembra a decisão tomada, por desespero, de o procurar...sem sucesso. Liz descreve o nevão como sendo cada vez mais forte e impiedoso. O frio era mortal e fala ter-se perdido dele mesmo. Desmaiou.
Minutos, horas, talvez dias depois, diz Elizeu, desconhecedor do tempo que passou inconsciente, despertou. Estava numa residência que acolhia vítimas da tempestade.
Na verdade, Liz passou três dias sobre o gelo. Considero um verdadeiro milagre, um homem com os seus sessenta anos, mesmo apresentando estatura alta e sendo notavelmente forte, tenha sobrevivido a tão penosa tragédia.
Liz, como lhe chamo, olhou-me nos olhos e pediu para ver o filho, Francisco, que havia estado com ele aquando a tempestade.
Francisco, de trinta e dois anos e notáveis problemas cardíacos, era a única família próxima que restava a Liz.
Não contive as lágrimas. Passados poucos minutos, procurei-o com os olhos, num olhar desmentido, e falei-lhe na morte do filho.
Liz não teve reacção imediata. Apenas uns minutos mais tarde deixou molhar a face com lágrimas de sofrimento, mantendo a sua expressão imóvel.
A situação da sua saúde complicou-se com a notícia da morte do seu ente. Elizeu desenvolveu problemas mentais e paralisias.
Passou a reviver em vez de viver.
Liz apenas guardou na sua memória o sofrimento por que passou naqueles longos dias. Acordava todos os dias, mas vivia apenas um. Contava-me sempre a história 'daquele dia'.
Acompanhava Liz sempre que podia. Nas refeições, eu estava presente. Também lia bastante para ele. Sabia que ele me reconhecia pelo brilho nos olhos com que me recebia.
Com o passar do tempo, a saúde de Liz ia agravando, chegando ao ponto de o impedir de falar como outrora o fazia.
Das poucas palavras que falava, Liz repetia as palavras - neve, serra, filho, morrer -, deixando cair uma lágrima ao repetir-las consecutivamente.
Chegado, novamente, o tempo dos dias frios e das tempestades, saí da residência de acolhimento, acompanhada por Liz.
Decidi levá-lo novamente à Serra, precisamente ao local onde foi encontrado o corpo gélido e morto de Francisco.
Chegados ao local, notei que havia um misto de emoções em Liz. Tinha um brilho nos olhos e a face lavada em lágrimas.
Pediu-me que o estendesse sobre a neve, onde havia morrido o filho.
O céu estava limpo e escuro. Era possível observar estrelas enormes e brilhantes.
Sentei-me a seu lado. Peguei-lhe na mão e comecei a ler-lhe um livro.
Liz agradeceu-me. Era notável a felicidade que sentia por estar sobre aquela neve. Talvez o fizesse sentir-se mais próximo de Francisco.
Sentia que Liz me apertava várias vezes a mão, com a pouca força que tinha, em sinal de gratidão.
Horas mais tarde, sob aquele céu reluzente, estendido na neve onde morrera Francisco, com um sorriso nos lábios e os olhos molhados de lágrimas, Liz morre.

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